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CRISTO, REI ENTRE MENDIGOS?

quando-te-vimos

Disse Jesus: “Meu reino não se compara aos reinos deste mundo”.

O senhorio de Cristo é libertador de toda forma de opressão e submissão. Desde a liberdade de espírito, que devolve à filiação divina obscurecida por nossos medos, fragilidades e pecados, à liberdade para a verdadeira unidade dos cristãos. Cristo Rei é, pois, o anti rei aos olhos do “mundo”. É incrível que seja também anti rei na Igreja. Dentro da Igreja, nos esforçamos por reproduzir os modelos de “reinado” do mundo, e não os do reino de Deus em Jesus Cristo!

Quantas vezes estabelecemos relações de poder autoritárias, com o próximo e a próxima, ao invés de relações fraternas? Quantas vezes entramos em concordância com os poderes dos sistemas religião, política, economia, enquanto agimos contrariamente — ou quando nos omitimos — sobre a pregação da Justiça? De que maneira nos beneficiamos da organização sob “absolutismo hobbesiano” (“o poder absoluto do Estado é necessário, por causa do egoísmo intrínseco ao homem”)?

Machiavelli (séc.16), mais cedo, defendia a utilização de todos os meios ao alcance dos governantes para a centralização e manutenção do poder. Thomas Hobbes defendia o absolutismo necessário para a organização social, o Estado acima da defesa do interesse do indivíduo e da sociedade. Para J-J Rousseau a função do Estado, noutro rumo, assegurando a democracia, o poder deveria garantir a sobrevivência contra a anarquia, e manter a ordem social. Somente quando falham outras formas aparecem os Estados paralelos. Mas Rousseau, sobre o poder, trataria também da importância do mesmo para a família e a educação, como base de uma sociedade organizada no sentido de garantir-se a dignidade social e humana.

À luz da liturgia com o tema “Cristo, o Rei do Universo”, perguntaremos se o que pensamos sobre Cristo baseiam-se na dominação/subserviência, ou na promoção da mútua liberdade responsável entre familiares e membros de nossa comunidade? Como são as relações de poder nesse meio? Valemo-nos da autoridade para impor uma certa maneira de exercer autoridade?

Justificamos, em nome de uma certa “autoridade”, abusos de poder, maltrato físico ou verbal, quando protagonistas da violência comum em tantos sociedades, contra deficientes, contra a mulher e a criança? As relações entre os membros da igreja comunitária concreta seguem o modelo cristão, ou seguem o modelo autoritário, repressivo, impositivo, excludente, próprio do “príncipe deste mundo”?

O pecado fundamental do ser humano é, pois, um pecado de “poder mal administrado”, mal assumido. E esta é a origem de todos os outros pecados: a avareza, a ganância, que conduzem a uma ordem econômica injusta; a soberba, que impede ver com clareza erros e pecados; a mentira, que leva a manipular ou a deixarmos manipular; o sexo utilizado como instrumento de poder, para “possuir”, oprimir; o medo, que impede de levantar-nos e caminhar com nossos próprios pés.

Poderíamos dizer que Jesus é o anti-rei segundo os modelos dos sistemas opressores: ele não quer dominar as demais pessoas. Pelo contrário, quer promover, convocar, “suscitar o poder” (energia) de cada ser humano, de modo que cada um assuma responsavelmente o peso e a alegria da liberdade. Jesus não recorre à violência de nenhum tipo, nem sequer à violência divina. Não recorre ao Deus dos Exércitos e suas milícias celestiais – não há nenhuma batalha espiritual em jogo, em éons superiores –, pois isso seria perpetuar as regras do jogo do “príncipe deste mundo” (Jo 12,31), o dono de “todos os reinos deste mundo e sua glória”. E por isso, pode dá-los a quem quiser (Lc 4,6: dou-te autoridade (exousia) sobre quem eu quiser, disse o diabo…).

Na cruz Jesus derrota e substitui total e radicalmente o demônio do poder concebido como violência e pressão por uma parte e como dependência, submissão e alienação, por outra dependência (Leonardo Boff). Jesus se recusa a ser coroado rei ao estilo do “mundo político” logo após a multiplicação dos pães e dos peixes (Jo 6,15). A tentação do poder, entendido no estilo dos sistemas opressores persegue Jesus. E desde o deserto até a cruz Jesus rechaça este modelo denunciando-o com toda clareza: o poder procede do diabo, pertence ao “príncipe deste mundo”. Jesus não cai em suas armadilhas.

Perguntado sobre o lugar onde pode ser encontrado, como rei (esperavam que confirmasse seu poder e autoridade entre reis, príncipes e imperadores com poder ostentado), Jesus responde: Sou encontrado quando estou entre mendigos; quando estou nú; quando tenho fome e sede; quando sou exilado, desamparado, explorado; quando estou preso, vítima da injustiça (Mateus 25).

O custo desta resistência, ou dessa visão de poder, não só valente, mas lúcida, é muito alto. A miséria é escamoteada para fora da realidade concreta. A cidade, por outro lado, onde se manifesta com o máximo exemplo de modernidade, é um mundo perturbado por comportamentos inaceitáveis. “Possessos do mal”, nem sempre reconhecidos como tais: fratricidas, traficantes de drogas, estupradores, pedófilos, drogaditos violentos; assassinos, espancadores de mulheres e crianças, homófobos, agressores, linchadores, flageladores, abusadores e assassinos sociais de crianças; homossexuais, mendigos, doentes mentais… não aparecem em manifestações de comoção coletiva, ocasionalmente.

Estes comportamentos se apresentam abaixo dos clamores por educação, ou nos confrontos com os sistemas de justiça aplicada à coletividade. Por mais modernos e eficientes que sejam. A cidade é o mundo do homem tomado por males reais, tão concretos quanto os de ordem econômico-social, expostos no cotidiano da violência urbana. Especialmente camuflados no falso “repúdio” e “vergonha” da sociedade insensível à essência imunda e maligna da miséria e da desigualdade. No entanto, é essa sociedade que reclama por tranquilidade, porque não quer ser incomodada em seu conforto.

“Ninguém que, tendo posto a mão no volante, olha para trás, pra dar marcha-a-ré, é apto para o reino de Deus” (Lc 9,62: paráfrase do autor). O Juiz das causas humanas, e das desigualdades, vem agora ao encontro dos homens e mulheres, através da vontade de Deus pregada por Jesus. Por meio da exigência assim anunciada, o presente está relacionado de uma maneira singular com o iminente futuro do projeto de realeza de Deus sobre todas as coisas, inclusive sobre as questões de Justiça e Paz na cidade. Assim, entendemos a pessoa de Cristo como o Rei do Universo, para reinar em nome de Deus.

Jesus, rei segundo a vontade de Deus, se apresenta na contramão das ações resistentes ao bem, à misericórdia, à solidariedade. À Salvação. Acolhe o doente, o marginalizado, cura-o e expulsa o que causa a doença. Acolhe o oprimido e o marginalizado. Não o manipula para garantir prestígio. Cura-o e expulsa o que causa a doença. Do esgoto ao arranha-céu, chama-o de volta para um mundo novo e saudável, mental e socialmente, recusando o conformismo e indignando-o quanto à injustiça e desigualdade de tratamento na distribuição dos bens sociais. Sugere que é preciso ir ao miolo do furacão, nas crises e nas convulsões que tomam a coletividade e a desnorteiam. Experimentamos tudo isso no Brasil de hoje. Tomar a direção dos centros de decisão onde estão os poderes políticos, econômicos e religiosos. Não basta curar os sintomas. É preciso atacar as causas das doenças, os pecados das estruturas que dominam e tomam conta da sociedade.

Derval Dasilio

2 pensamentos em “CRISTO, UM REI ENTRE MENDIGOS

  1. CRISTO, REI ENTRE MENDIGOS?

    O senhorio de Cristo é libertador de toda forma de opressão e submissão. Desde a liberdade de espírito, que devolve à filiação divina obscurecida por nossos medos, fragilidades e pecados, à liberdade para a verdadeira unidade dos cristãos. Cristo Rei é, pois, o anti-rei aos olhos do “mundo”. É incrível que seja também anti-rei na Igreja. É o Cordeiro degolado (Ap 5,12) que nos reconcilia com Deus e nos leva, não de regresso ao Paraíso Perdido, às utopias negativas sobre o julgamento e a destruição do mundo, mas à utopia da esperança na Nova Jerusalém, do “novo céu e uma nova terra”, na qual não haverá joelhos dobrados, como se exige, às realezas deste mundo.

    Dentro da Igreja, nos esforçamos por reproduzir os modelos de “reinado” do mundo, e não os do reino de Deus em Jesus Cristo! Quantas vezes estabelecemos relações de poder autoritárias ao invés de fraternas! Quantas vezes entramos em concordância com os poderes dos sistemas religião, política, economia, enquanto agimos contrariamente — ou quando nos omitimos — sobre a pregação da justiça! O modelo de “reinado” que o “Cordeiro degolado que tira o pecado do mundo” nos apresenta, interpela e chama a mudar de rumo.

    De que maneira se beneficiaram da organização do “absolutismo” hobbesiano (“o poder absoluto do Estado e necessário, por causa do egoísmo intrínseco ao homem”), ou maquiavélico (o fim justifica os meios), e pelo humanismo de J-J. Rousseau. Apesar dessa importância, os principais teóricos do absolutismo se utilizariam do discurso racional, de origem renascentista. Machiavelli, mais cedo, defende a utilização de todos os meios ao alcance dos governantes para a centralização do poder; Thomas Hobbes defende o absolutismo necessário para a organização social, o Estado acima da defesa do interesse do indivíduo e da sociedade. Para J-J Rousseau a função do Estado, noutro rumo, é garantir a sobrevivência contra a anarquia e manter a ordem social. Quando falham outras formas aparecem os Estados paralelos. Mas Rousseau trataria também da importância da família e da educação como base de uma sociedade organizada no sentido da dignidade social e humana.

    À luz da liturgia com o tema “Cristo, o Rei do Universo”, e do modelo de relações existentes refletimos sobre nossas atitudes nos diversos âmbitos em que nos movemos, perguntamos: como são as relações de poder em nossa casa? Baseiam-se na domina-ção/subserviência, ou na promoção da mútua liberdade responsável entre os familiares? Como são as relações de poder na família? Valemo-nos da autoridade para impor uma certa maneira de exercer autoridade? Justificamos, em nome da “autoridade”, abusos de poder, maltrato físico ou verbal, quando protagonistas da violência comum em tantos lares, contra a mulher e a criança? As relações entre os membros da igreja comunitária concreta seguem o modelo cristão ou seguem o modelo autoritário, repressivo, impositivo, excludente, próprio do “príncipe deste mundo”?

    Erich Fromm (Medo à Liberdade) expõe que “frente a angústia que produz no ser humano a consciência de estar separado do resto da criação, adotamos duas atitudes igualmente patológicas: dominar os outros, ou aceitar depender de alguém, entregando-lhe nossa liberdade. Em ambos os casos, as pessoas buscam, através destes mecanismos, dissolver a barreira que as separa do resto do universo”.

    O pecado fundamental do ser humano é, pois, um pecado de “poder mal administrado”, mal assumido. E esta é a origem de todos os outros pecados: a avareza, a ganância, que conduzem a uma ordem econômica injusta; a soberba, que impede ver com clareza erros e pecados; a mentira, que leva a manipular ou a deixarmos manipular; o sexo utilizado como instrumento de poder, para “possuir”, oprimir; o medo, que impede de levantar-nos e caminhar com nossos próprios pés.

    Convém recordar em que consistiam as esperanças messiânicas do povo judeu no tempo de Jesus: uns esperavam um novo rei, ao estilo de Davi e sua dinastia. Outros, um chefe militar que fosse capaz de derrotar o poderio romano; e outros como um novo Sumo Sacerdote que purificaria o Templo (cf. a revolução dos Macabeus). Nestes três casos se esperava um messias, cristo triunfante, poderoso, atuando na política, na economia e na religião.

    Poderíamos dizer que Jesus é o anti-rei segundo os modelos dos sistemas opressores: ele não quer dominar as demais pessoas. Pelo contrário, quer promover, convocar, “suscitar o poder” (energia) de cada ser humano, de modo que cada um assuma responsavelmente o peso e a alegria da liberdade. Jesus não recorre à violência de nenhum tipo, nem sequer à violência divina. Não recorre ao Deus dos Exércitos e suas milícias celestiais – não há nenhuma batalha espiritual em jogo, em éons superiores –, pois isso seria perpetuar as regras do jogo do “príncipe deste mundo” (Jo 12,31), o dono de “todos os reinos deste mundo e sua glória”. E por isso, pode dá-los a quem quiser (Lc 4,6: dou-te autoridade (exousia) sobre quem eu quiser, disse o diabo…).

    Na cruz Jesus derrota e substitui total e radicalmente o demônio do poder concebido como violência e pressão por uma parte e como dependência, submissão e alienação, por outra dependência (Leonardo Boff). Jesus se recusa a ser coroado rei ao estilo do “mundo político” logo após a multiplicação dos pães e dos peixes (Jo 6,15). A tentação do poder, entendido no estilo dos sistemas opressores persegue Jesus. E desde o deserto até a cruz Jesus rechaça este modelo denunciando-o com toda clareza: o poder procede do diabo, pertence ao “príncipe deste mundo”. Jesus não cai em suas armadilhas.

    Perguntado sobre o lugar onde pode ser encontrado (esperavam que confirmasse seu poder e autoridade entre reis, príncipes e imperadores), Jesus responde: “quando estou entre mendigos, e estou nú; quando tenho fome e sede; quando sou exilado, desamparado, explorado; quando estou preso, vítima da corrupção da política e da justiça” (Mateus 25). O custo desta resistência não só valente, mas lúcida, é a morte. Mas as ressurreições sucedem o martírio.

    Derval Dasilio

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  2. A miséria é escamoteada para fora da realidade concreta. A cidade, por outro lado, é um mundo perturbado por comportamentos inaceitáveis de “possessos do mal”, nem sempre reconhecidos como tais: fratricidas, traficantes de drogas, estupradores, pedófilos, drogaditos violentos; espancadores de mulheres e crianças, homófobos, agressores, linchadores, flageladores, abusadores e assassinos sociais de crianças; homossexuais, mendigos, doentes mentais… A cidade é o mundo do homem tomado por males reais, tão concretos quanto os de ordem econômico-social, expostos no cotidiano da violência urbana, camuflados no falso repúdio e vergonha da sociedade insensível à essência imunda e maligna da miséria, mas que reclama por sua tranquilidade, porque não quer ser incomodada em seu conforto.

    “Ninguém que, tendo posto a mão no volante, olha para trás, pra dar marcha-a-ré, é apto para o reino de Deus” (Lc 9,62: paráfrase do autor). O Juiz das causas humanas, e das desigualdades, vem agora ao encontro dos homens e mulheres, através da vontade de Deus pregada por Jesus. Por meio da exigência assim anunciada, o presente está relacionado de uma maneira singular com o iminente futuro do projeto de Deus sobre todas as coisas, inclusive sobre as questões de Justiça e Paz na cidade.

    Jesus se apresenta na contramão das ações resistentes ao bem, à misericórdia, à solidariedade. À Salvação. Acolhe o doente, o marginalizado, cura-o e expulsa o que causa a doença. Acolhe o oprimido e o marginalizado. Não o manipula para garantir prestígio. Cura-o e expulsa o que causa a doença. Do esgoto ao arranha-céu, chama-o de volta para um mundo novo e saudável, mental e socialmente, recusando o conformismo e indignando-o quanto à injustiça e desigualdade de tratamento na distribuição dos bens sociais. Sugere que é preciso ir ao miolo do furacão. Tomar a direção dos centros de decisão onde estão os poderes políticos, econômicos e religiosos. Não basta curar os sintomas. É preciso atacar as causas das doenças, os pecados das estruturas que dominam e tomam conta da sociedade /span>

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