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o próximo em diagrama

14º DOMINGO DO TEMPO COMUM [DEPOIS DE PENTECOSTES]
Amós 7,7-17 – O Senhor despreza a religião emparedade e sem misericórdia
Salmo 82 – O Senhor faz justiça aos órfãos e os fracos
Colossenses 1,1-14 – Viver frutificando o bem, acima de tudo
Lucas 10,25-37 – Quem são os nossos próximos?

[*]Nos dias de Jesus, só se fazia o que permitia a estrutura legal e rejeitava-se o que era proibido por essa estrutura. O legalismo, imposto pela estrutura religiosa, era a norma oficial da moral do povo. Tinha-se chegado, por exemplo, a estabelecer, partindo da lei religiosa, que a lei do culto — leia-se como lei do templo ou da “igreja” –, primava sobre qualquer lei.

[*]Este foi o contexto em que nasceu a parábola do bom samaritano: um homem necessitado de ajuda, caído no caminho, mais morto que vivo, sem direitos reconhecidos, violentado em sua dignidade de pessoa, ferido e nu, é abandonado pelos cumpridores da lei (sacerdotes e levitas, servidores da religião) e em troca é socorrido por um “ilegal” samaritano. A bem dizer, alguém que não podia entrar no templo e não tinha boas relações com judeus. Ele é um “distante”, um estranho, mas passa a ser modelo exemplar oferecido ao religioso cristão.

[*]Somente Lucas conservou para nós esta parábola no seu Evangelho. Jesus, por sua vez, devolve a pergunta para que o letrado religioso pesquise a lei codificada, sua especialidade. Ele encontrará a resposta no amor…  O religioso culto, citando de memória as Escrituras (Dt 6,5 e Lv 19,18), faz uma síntese do conteúdo dos 613 preceitos religiosos (cerca de 430 negativos: não farás…) sobre como “amar a Deus e ao próximo”sob a lei deuteronômica…Encontrada também no Thalmud e no Midrash (da palavra derash, procurar). Comportamentos de conduta são conhecidos como halakah, um conjunto de preceitos gerais. Jesus, porém, responde de acordo com a Torah, pentateuco – os cinco primeiros livros. Conforme a versão grega Septuaginta, também –, como foi perguntado. Jesus aprova a resposta da tradição bíblico-teológica rabínica.

[*]O letrado interroga novamente, porque no Levítico o próximo é o israelita – ascendente histórico do judeu –, e no Deuteronômio, este título está reservado unicamente para pessoas do meio cultural e religioso judaico… Jesus, em vez de discutir e entrar em desafios sem saídas, procura não semear novas teorias e interpretações perante a lei antiga, e sua prática. Propõe uma parábola como exemplo vivo de quem é o próximo, e constrói um midrash, ou um sermão exemplar sobre os significados do amor.

[*]Quando dizemos que a descrição do samaritano é esplêndida, nesta parábola de Jesus — com referências a posses materiais do samaritano bem-posto: azeite, vinho, cavalgadura, dinheiro para ajudar um pobre infortunado que encontra ferido e abandonado no caminho –, nos aproximamos de questões básicas. Bem-postos economicamente, religiosos, desprendimento, solidariedade da parte de quem propõe esforço pessoal no socorro dos enfraquecidos, sob sistemas políticos e econômicos egoístas e injustos, e disponibilidade para assistir despojados e violentados da sociedade humana em todos os tempos e lugares. O samaritano compassivo e solidário é um homem rico. Um homem cheio de amor pelo próximo, seja ele quem for.

[*]A história humana é caracterizada por uma interminável sucessão de negações do amor ao próximo (Bernhard Haring). Os resultados da intolerância são feridas abertas, exclusão e marginalização, gerando o abandono e morte social dos mais pobres, feridos em sua dignidade (dignitatis = direitos fundamentais).  Só o amor transforma a justiça codificada, que privilegia quem já é privilegiado, em justiça igualitária, compassiva, situacional, concreta. Especialmente quando nos deparamos com emergências e prioridades. Notadamente quando a vida humana está em perigo de morte.

[*]O amor torna a justiça verdade ética inquestionável, porque a decisão tomada sob sua influência é, originalmente, gratuidade e a compaixão pelo fraco. “Justiça sem amor é necessariamente injustiça, porque o amor não remove, mas simplesmente estabelece a justiça”, disse Paul Tillich.  A justiça sem amor ignora a solidariedade, misericórdia ou compaixão.

[*]O próximo jorra da mesma fonte, é resultado da terra; é filho da sociedade humana, e se relaciona com o mundo da mesma maneira que eu. É, o próximo, imagem e dádiva de Deus, ao mesmo tempo. Todos os valores relacionais ideais constituem ponto de partida anterior à justiça codificada. Dizem respeito à vida de todos. O próximo nos comunica: “sou um corpo concreto, e tu me conheces na materialidade compartilhada da vida”. Cremos que a concretude da vida é um fato que não deve ser esquecido, para que não caiamos em abstrações e reduções do corpo do próximo. Diria Rubem Alves: “o próximo, corporificado, vale mais que todas as verdades que anunciam sua pequenez; o corpo aguarda a consciência de que somos iguais. O corpo é mais sábio do que a cabeça  o cérebro”.

[*]Emmanuel Lévinas, pensador judeu moderno, diz: “Deus vem ao meu pensamento quando vejo o outro, o próximo”. Na face do outro está o rosto transcendente de Deus (cf. Mateus 25,38). Também judeu, Martin Buber dizia: “O outro (o próximo) não é um isto, mas um tu”. Tenho comentado sobre a relação “Eu | Tu, equação amorosa criada por Buber, lembrando: “Eu sou tu quando me olhas, e Tu sou eu quando te olho”.

[*]Muitos agnósticos, e até mesmo ateus,  deparam-se com a parábola evangélica sobre a solidariedade amorosa apontada em Lucas (10,25-37), e reconhecem que não há futuro pra a dignidade humana num mundo tomado pela impiedade, senão pela compaixão e solidariedade. Para os cristãos, o evangelho oferece a oportunidade de compartilhar a experiência de Deus com o mundo do próximo, através da solidariedade, reconhecendo-o como o nosso “Tu”. Esta oportunidade, por si mesma, reflete o amor e a experiência de Deus. Num só momento.

[*]A força potente do amor energiza e dá capacidade de lutar, de proteger, socorrer, vestir, alimentar e curar o próximo. Diz a canção de Carlinhos Lyra:  “Sabe você o que é o amor? Não sabe? Eu sei./ Sabe gostar? Qual sabe nada, sabe, não./ Você sabe o que é uma flor? Não sabe, eu sei. / Você já chorou de dor? Pois eu chorei. / Já chorei de mal de amor, já chorei de compaixão./ Quanto à você meu camarada, qual o quê, não sabe não./ Você não tem alegria, nunca fez uma canção, / Por isso a minha poesia… você não rouba não.”

[*]Agostinho, na antiguidade, confessava: “O meu amor é o meu peso; onde quer que eu vá, ele me conduz e me faz inclinar”. Esse “peso” é citado por Jesus: “Vinde a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu aliviarei vocês. Tomem sobre vocês a minha carga e aprendam, porque sou manso e humilde de coração; e acharão descanso. Porque o meu peso (amor) é suave, e o meu fardo é leve” (Mateus 11:28-30). Uma metáfora magnífica da compaixão, da ternura, da solidariedade que nos une ao que sofre, na experiência de Deus em Jesus.

[*] Derval Dasilio

4 pensamentos em “O PRÓXIMO, EU E TU

  1. 15º. DOMINGO DO TEMPO COMUM DEPOIS DE PENTECOSTES
    EM TEMPOS DE ESTUPRO COLETIVO JESUS SOCORRE A MULHER
    Amós 8,1-12 – Corrupção transformada em funeral…
    Salmo 52 – Os justos haverão de ver e ouvir tudo
    Colossenses 1,15-18 – Nele são reconciliadas todas as coisas
    Lucas 10, 38-42 – Bem-aventurado o que ouve sobre a violência social…

    “Et Dieu créa la femme”, lembrava o cineasta Roger Vadin em 1956. Por onde andariam as mulheres, no início da era cristã? Na segunda geração da igreja inicial, pós-apostólica, as mulheres tinham funções diminutas (Elza Tamez). Isso se deve à forte pressão da cultura patriarcal judaico-cristã na Igreja. Inventa-se uma outra forma de domínio para submeter a mulher: o “patriarcado amoroso”. Que não deixa de ser patriarcado.

    Lucas, depois, nos apresenta finalmente um caso pertencente às tradições recebidas pelo evangelista no círculo de seus discípulos, especialmente as mulheres, faz-nos contemplar um quadro familiar, no qual Jesus faz uma visita a amigas. Marta e Maria recebem-no em sua casa. Marta se multiplicava para atender o hóspede. Jesus a repreende: “por que andas inquieta com tantas coisas, tantos afazeres, e não ouves o que tenho a dizer”?

    A vida das mulheres era, no antigo Israel, bem próxima da escravidão, se consideramos a exclusão da vida pública. Não menos na Judeia contemporânea de Jesus. Seu papel era servir os homens. Em tempos remotos, filhas podiam ser vendidas como escravas. Mulheres menstruam, parem filhos, têm sangramentos naturais, conforme determinam seus corpos e organismos, era repugnante a um judeu ser tocado por uma mulher nestas condições. Para a religião isso é “impureza”. Sua desqualificação, pela forte imposição da religião, separava-as no templo e na sinagoga.

    Cristãos ortodoxos e islâmicos, no Oriente, continuam com prescrições semelhantes até os dias de hoje. Segundo a lei judaica, mesmo diante do direito romano que o favorecia, o divórcio não lhes era facultado. Só as mães eram elogiadas. Noivas, desde a pré-adolescência, podiam ser repudiadas se desvirginadas ou apresentando gravidez. Mulheres estupradas, violentadas, mães solteiras, eram apedrejadas. Risco que correu a mãe de Jesus, não houvesse José aceitado ser seu “pai adotivo”. Jesus não acompanhou a cultura autoritária e codificada de seu povo, nas prescrições do “halacah”, ou na “Torah”. Provavelmente, porque as prescrições sobre o “impuro”: bastardia, enfermidades, pessoas com deficiências deficiências físicas, em geral, também não estavam em sua relação de interesses, a não ser quanto à inclusão religiosa e social de tais pessoas. Anunciou que elas eram preferenciais no Reino de Deus (Mt 27-36).

    Maria, frente a Jesus, prefere ser uma mulher educada, cortês, “receber Jesus”, oferecendo hospitalidade no seu espaço interior, secreto. Na profundidade dos sentimentos, das percepções, e das sensações e anseios do coração. Espaço colocado para ouvir e refletir. Marta, porém, oferece coisas a Jesus. Maria se oferece para ouvir, pode ver e ouvir com o coração, quando se pode constatar a Grande Realidade salvadora, mesmo quando constatada em pequenos fatos e pequenas realidades (J-Y. Leloup). Quais são as demandas, as necessidades e os sonhos libertários que Marta não intuiu?

    Talvez, Jesus quiria lhe dizer que a sociedade autoritária, seus valores, aspirações de poder e de mando, funcionava contra a vida. E, que mitos sobre supremacias sexuais, raciais, econômicas, culturais, confirmam criações e afirmações sobre absolutismos, determinismos políticos e culturais tidos como irremovíveis, agregados às crenças na fatalidade e irreversibilidade do mal estrutural. Desigualdades impostas, com ingredientes de preconceitos, intolerância, hegemonia sobre indivíduos e classes, comparecem como excrescências acumuladas nas sociedades autoritárias. [matéria sobre estupro nos últimos dias]

    E, quem sabe, outras coisas mais, das criações humanas para justificar a exclusão, oprimir, estigmatizar, alijar e exterminar seres humanos. Jesus poderia dizer à amiga judia que a vida criada por Deus, entregue às criações humanas da ganância, de supremacia, de poder, era corroída por um interesse espúrio de dominar as pessoas em lugar de Deus, substituindo-o.

    Em nossa sociedade, são homens que estigmatizam mulheres, e absolvem estupradores. A revista CartaCapital (15.junho 2016), relata: “É no Brasil conservador que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos. Estupros coletivos, crianças e adolescentes, ataques familiares e de pessoas próximas da família das vítimas, oferecem um diagnóstico da perversidade masculina. A ideologia do patriarcalismo, cultura do machismo, alimenta as diversas formas da violência contra a mulher, entre elas o estupro. Mulheres são colocadas como objeto de domínio, ou como propriedade do homem. E, no universo perverso da violência contra a mulher, cresce o número de vítimas mortas — no Brasil, 13 homicídios femininos por dia, segundo o Mapa da Violência, 2015”.

    Segundo o julgamento de Jesus, Maria escolheu imediatamente “a melhor parte”, que é refletir e tomar conhecimento das realidades imediatas, um mundo e uma sociedade que necessitam de transformação, de justiça e de igualdade na partilha dos bens sociais e culturais. Há necessidades, além do que se exige da mulher: paixão, abraços, carícias, sorrisos; intimidade sexual, trabalho remunerado em desigualdade com o homem, além das coisas que dão prazer. Marta, submissa às convenções sociais, desgraçadamente, não quer que nada falte ao importante hóspede. Pretende dar tudo, e deixa passar inconsequentemente “a única coisa necessária”: ouvir as intenções de Deus (shemah Israel:” Ouve, ó Israel, diante de ti coloco dois caminhos” – Deut 6,4).

    Não se podem ocultar as causas que fazem indivíduos humanos sofrer, homens ou mulheres, além das pressões sociais. Fracassos, desequilíbrios, desajustes, como a violência, a luta por supremacia, e tantas mais, atuam contra os mesmos. Além das estruturas antagônicas do medo, do pavor diante da natureza, tempestades, furacões, terremotos. E a angústia sobre o mal abstrato na superstição, na magia religiosa, da submissão à fatalidade. O evangelho de Jesus expõe os males concretos no campo das realidades econômico-sociais: trabalho, moradia, saúde pública, fome e miséria, no elenco perverso que traz sofrimento.

    A ética de Jesus dá apoio à ânsia da sociedade que pressiona por mudanças além das legislativas. Mudanças culturais na família, nos grupos sociais, na coletividade, se fazem necessárias com urgência. “Quando usamos o corpo de uma mulher para vender mercadorias, na publicidade, estamos colocando-a como mais um produto vendável, mais um objeto à disposição do mercado masculino. Isso deixa a mulher ainda mais vulnerável a todos os tipos de violência. Ensinamos às meninas, desde cedo, que o valor da mulher está na aparência, e que elas somente serão desejadas se corresponderem às espectativas dos homens. Que a principal realização da vida de uma mulher é o casamento e a aprovação masculina. E elas, assim, nem percebem que estão sendo vítimas da violência cultural admitida em nossa sociedade”, afirma Maíra Liguori.

    Marta, solteira, marcada pela sociedade de seu tempo — que exige dela submissão ao trabalho escravo, procriação numerosa para reforçar o mercado de trabalho — reclama de Jesus, e não sabe o que ele quer. O problema é precisamente este: descobrir pouco a pouco o que Jesus quer falar. A palavra de Jesus é a Palavra de Deus!

    Maria compreendeu que estas palavras, que aos olhos da eficiência codificada da lei religiosa pode parecer superficial e inútil, é “condicio sine qua”, condição fundamental para alguém chegar a ser autêntico discípulo de Jesus. “Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não será julgado (por não ouvir), mas passou da morte para a vida” (João 5,24). “O que vimos e ouvimos isso vos anunciamos, para que vós também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo” (1João 1,3). Maria compreendeu. Que mais deve ser dito?
    Derval Dasilio

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  2. GANÂNCIA
    16o domingo tempo comum depois de pentecostes – 2016

    DE SOBREAVISO CONTRA A GANÂNCIA

    16º. DOMINGO DO TEMPO COMUM DEPOIS DE PENTECOSTES
    Oséias 11,1-11 – Meu povo é obstinadamente apóstata
    Salmo 107, 1-9 (40) – Alguns extraviaram-se por desertos afora
    Colossensses 3,1-11: Fazei morrer em vós os maus desejos
    Lucas 12,13-21 – Meu Pai entregou-lhes o reino como tesouro…

    ganancia principal – Quantos deixaram passar por suas vidas a grande oportunidade de ouvir a mensagem do Reino de Deus, de justiça para todos, e não são capazes de descobri-lo, pois seu coração está ocupado por outros desejos? “Onde está teu dinheiro, aí está o teu coração”, sugere o Evangelho… A expectativa de alcançar tesouros e bens é bem ilustrada na parábola rabínica: “Um homem descobre um cofre enterrado. Manda desenterrá-lo. Ao abrir o cofre, uma surpresa: dentro, ainda pulsando, estava seu coração…”.

    Então Jesus lhes disse: “Cuidado! Fiquem de sobreaviso contra todo tipo de ganância; a vida de um homem não consiste na quantidade dos seus bens”. Por que razão viver submissos ou dependentes de outros, para nos manifestarmos, ou para tomarmos iniciativas cristãs em favor do Reino de Deus? Por que não viver sem nenhuma preocupação, vivendo de modo irresponsável para com os demais? Por que Jesus nos recorda que “à hora que menos esperam, virá o Filho do Homem”?

    Calcada na ideia acertada de Nietsche sobre o poder, que poderia lembrar-nos os motivos anteriores, dos que preparam “o cerco das multidões”: trata-se do inato impulso em direção à posse, à supremacia, ao controle e mando, à competição e superioridade, em quaisquer situações. Estamos sitiados pelo dinheiro. Previu o mal-estar maior que a modernidade conheceria seria a exacerbação, o elogio da “ganância” por trás das tragédias, como a situação política da nação, nestes dias em que as ruas estão incendiadas, em manifestação e crítica direta aos governantes do país inteiro.

    A construção do painel vertiginoso da vida moderna, tomada pela ganância de poder, de ter, de dominar a vida e a morte, encontra na obra de Goethe “Fausto”, um parâmetro estarrecedor. E verdadeiro. Essa obra foi construída à luz de grandes turbulências políticas, como a revolução francesa, e a revolução industrial gerada na Gran Bretanha. A moderna democracia, assim como a industrialização capitalista, predatória, excludente, determina a vida das pessoas, especialmente no mundo ocidental. Temos no Fausto a síntese da ganância de poder e domínio sobre as riquezas deste mundo.

    Fausto vendia ao diabo (Mefistófeles) sua alma, pela fortuna e pelo poder. Mefistófeles trava com Fausto um debate sobre como sobreviver, onde a acumulação do capital, dos bens, explora fundamentalmente a mente gananciosa: “Entendamo-nos bem, não ponho a mira na posse do que o mundo apelida de gozos; o que eu quero é atordoar-me; quero a embriaguês de incomportáveis dores, a volúpia do ódio, o arroubo das mais altas aflições. Estou curado da sede de saber (…). As sensações todas da espécie humana em peso, quero-as dentro de mim; seus bens, seus males mais atrozes, mais íntimos, se entranhem aqui onde minha mente e vontade são aplacadas. Assim me torno eu próprio a humanidade e, se por fim a perder, me perderei com ela” (Marshal Bermann).

    A característica fundamental do que se apresenta para os jovens de nosso tempo refere-se à ganância, agora ensinada como virtude na sociedade hipermoderna. A vida e a alma estão situadas nas coisas; a alma do mundo é o dinheiro e os bens acumulados. Mal que nos acompanha desde as sociedades arcaicas, ou primitivas. Sucesso é “ouro”, ser dono de tesouros e bens; ser portador de “credicard”, passaporte para a felicidade do consumo. Portanto, a desumanização da vida está em alta, e em baixa o espírito, valores que sustentam o corpo, a partir do cultivo da misericórdia; da compaixão e da solidariedade. O dinheiro é o coração do novo complexo de acumulação; capacidade de gerar falso bem-estar (juros) e energia, enquanto o corpo vai recebendo os influxos da civilização moderna em torno do capital (Norman O. Brown).

    OS JOVENS E A PEDAGOGIA DA GANÂNCIA

    Aqui nos deparamos com o destino humano, pensando nos jovens, suas perspectivas abertas, horizontes infinitos, sem nos privarmos do esplendor da vida em todas as suas manifestações. A vida é um tesouro real e duradouro. Sonhamos com paraísos, igualdade entre homens e mulheres; construímos utopias sobre o bem-estar coletivo, habitação digna, saúde pública moralmente aceitável, escolas verdadeiras e humanizadas, pão em todas as mesas. Como os sons e as tonalidades do universo, podemos dizer que há um céu em nós, como há um sol, e estrelas; que não há um “eu” sozinho, mas muitos “eus” compartilhando a vida criada por Deus. Sempre em busca da plenitude.

    Paraísos são sempre sonhados para serem realizados. Paraísos são a Esperança. Precisam ser vividos, necessitam ser magnificados. Gaston Bachelar recorre à poesia, poder da imaginação, porque um poeta imita Deus quando recorre à eficácia das belas imagens do mundo criado. Diria que “um belo poema, como o da Criação e do Universo inteiro (Salmo 19), não é mais que uma maravilhosa loucura retocada”. Só os poetas, e o próprio Deus, crêem que a beleza do mundo inteiro, como os seus mistérios, está nos olhos da criança recém-nascida. Que mundo e que humanidade a esperam. Os céus declaram a poesia de Deus, e o firmamento declama a obra das suas mãos.

    “Sim, e quantas vezes precisará um homem olhar para cima,/ Antes que ele possa ver o céu?/ Sim, e quantas orelhas precisará ter um homem,/ Antes que ele possa ouvir o lamento das pessoas?/ Sim, e quantas mortes ele causará, até saber/ Que tantas pessoas morreram?/ A resposta, meu amigo, está soprada no vento” (Blowin’ in the Wind, Bob Dylan).

    Derval Dasilio

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  3. ;”font-size: 14pt; font-family: book antiqua;COMPLETANDO O PRIMEIRO TEXTO
    Um anônimo se manifesta no meio da multidão: “Dize ao meu irmão que reparta comigo a sua herança”. Jesus responde: “Não sou juiz nem árbitro de sua causa. O que você deve fazer é livrar-se da ganância, Porque, por mais rico que seja alguém, sua vida não será preservada com seus bens”.
    Como nos nossos dias, herdar alguma coisa, ser rico, premiado em alguma loteria, ter imóveis, carros de luxo, poder fazer turismo caro, indo à Disney, ou a Paris, ou a New York, pode ser muito importante. Para si e para seus dependentes. Pois bens, Jesus não veio para conceder prosperidade material para ninguém. O que ele faz, simplesmente, é ir às raízes da vida humana. Há sofrimento nas ruas, nos lares, no mercado de trabalho, na política nacional.

    Seguramente, vivemos em tempos de desprezo pelas urgências humanitárias, que referem-se às grandes necessidades que envolvem as pessoas mais pobres da sociedade e da comunidade. Tragédias ocasionais, prato do dia nos canais da televisão, epidemias cíclicas, terrorismo, massacres impostos pelos chamados “lobos solitárias”, escondem momentaneamente o que, de fato, é urgente. De um lado, a sociedade não cessa de insuflar a ganância, a instigar as vantagens de ter, de patrimonializar, enquanto induz ao lazer, ao bem-estar. momentâneo. Do outro lado as mesmas fontes de comunicação apresentam paliativos à frivolidade ou superficialidade da vida.

    Alimentação saudável, ginástica para o emagrecimento, musculação, fitness, esportes e competições profissionalizados, na Tv, não conseguem apagar a vida estressante. Há trabalhadores desempregados, inflação, encarecimento de produtos essenciais, moradores de rua morrendo de frio, craqueiros e traficantes invadindo o espaço público. Há apreensões sobre o destino que o judiciário concede a corruptos em julgamento — cujas condenações equivalem a um longo período de férias em mansões luxuosas –, ou a falta de segurança na economia e na distribuição dos bens sociais, na alternância de governos que não conseguem se descartar da grande e complexa crise mundial do capitalismo politicamente narcisista.

    Mergulhados na urgência do tempo e da instantaneidade, também não percebemos o eclipse humanitário, e o lado escuro da ganância, da cobiça, enquanto permanecemos órfãos e sem qualquer herança verdadeira, significativa, em termos de valores humanos, para deixar aos nossos descendentes.

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