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O inferno é aqui, e não na eternidade. É graças aos símbolos, e seu poder, que podemos nos abrir para entender as forças cegas que regem o universo. Em primeiro lugar, e o religioso parece não entender tal coisa. O inferno aponta o fracasso em eliminar o mal na criação, como o religioso deveria pregar, mas não o faz. Ainda que muitos acreditem que Deus consente na atroz miséria deste mundo, em holocaustos e genocídios, em pandemias, por exemplo, não pertenço ao universo dos atormentados pelo inferno reservado a quem não aceitar aqui a salvação “evangélica” fundamentalista que se oferece. Quem será salvo do inferno? De que inferno? É inconcebível que um Deus apontado nas Escrituras, em especial por Cristo, como Pai de Amor, Criador do universo e de todos os seres viventes sobre a terra, possa destinar quem quer que seja ao inferno concebido em doutrinações que ignoram a paternidade amorosa de Deus. Deveríamos nos concentrar nos fatores mais importantes. Quem nos ensina a resistir à salvação? Ser não-salvo pode ser uma escolha deliberada para alguns, que negam as oportunidades de livrar-nos do inferno existencial no qual certamente vivemos. Não pode existir pior inferno do que o inferno absurdo em que vivemos.


[+] Despertados para a experiência individual facilmente chegaremos ao ato espiritual de uma compreensão existencial do mundo, e dos dramas que desenrolam em nossos pesadelos, em imersão no inconsciente profundo, transtornados pela culpa ancestral. Ou pelo desejo moral de vingança. Se Deus perdoa os malfeitos dos justificados pela Graça, por que perdoa o mal cometido pelos injustos que dispensaram a justificação? Ao buscarmos o equilíbrio entre a Graça, o perdão e a aceitação, desvendamos o que a fé conservou, permitindo reencontrar os traços salvadores de Deus visíveis no mundo. Os quais prenunciam a não-salvação de quem rejeita ou dispensa, por não saberem, os recursos infinitos do amor, expressos na misericórdia, na compaixão, na solidariedade e no cuidado com o semelhante. Precisamos, sim, reconhecer que precisamos ser salvos de nós mesmos. Responderemos ao filósofo Jean-Paul Sartre, que disse “o inferno são os outros”. Na verdade, o inferno somos nós mesmos quando desprezamos o amor de Deus em Graça infinita e maravilhosa
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[+] Porém, se o homem é imagem e semelhança de Deus — e Deus é amor –, por que Ele mesmo, vingativamente, atiraria no abismo eterno chamado inferno aquele que não se mostrou digno dessa imagem? Não é no homem que a força absoluta do amor reflete o amor de Deus? Como entender que o apóstolo Paulo aponta como alvo da Graça todo pecador, porque “todos pecaram”, e são aceitos por Deus, mesmo na condição de pecadores? O inferno não seria aqui e agora a criatura rejeitando seu próprio bem? Será que Deus, esgotados todos os recursos para salvar-nos de nós mesmos, permitiria um castigo, no “fogo eterno”, àquele que ignorou o bem e o amor — em manifestações como a bondade, a compaixão, a misericórdia, a solidariedade e cuidado para com o semelhante — durante a sua vida? Seria assim, atirando-nos no inferno, que Deus expressaria seu próprio fracasso em convencer-nos sobre o amor?


[+] Aceito as respostas apontando que o amor fundante é a realidade última, a felicidade e a salvação definitiva, que faz parte do mistério de Deus. “Se Deus está a nosso favor, quem estará contra nós? […] quem acusará Deus de escolher quem quer salvar? É Deus quem torna justo (o que julgamos injusto e imerecedor da salvação). Quem poderia condenar? Jesus Cristo? Mas é ele que morreu, melhor, que ressuscitou, que está à direita de Deus, intercedendo por nós?” (Romanos 8,31-34). Por fim:
“Portanto, estou seguro de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos afastar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,38-39).


[+] O desafio é total, porque o Mal continuará criando esse vazio obscuro, conforme disse Andrés Queiruga, criando incertezas, apresentando soluções parciais, às vezes camufladas pela terceirização salvacionista humana, contaminando o sentido da vida, e pressionando no sentido da dúvida sobre a gratuidade total que vem de Deus. Sem dúvida, uma aposta de vida ou de morte sobre uma fé que não se submete à razão sobre si mesma, justificando o homem, ser humano, disposto ou não a aceitar a oferta de Deus. Deus é transcendência cristalina. Ele quer a salvação dos esquecidos nos grotões da vida, presos nos abismos das escolhas erradas ou por imposição fatalista, determinista.


[+] Jesus jamais falou da condenação ao inferno. Pelo contrário, o evangelho mostra que quis resgatar os incapacitados de concorrer na maratona imposta pela vida; que não alcançam méritos, deixados para trás, excluídos, abandonados nos despenhadeiros das desigualdades, do racismo, da homofobia, das diferenças sexuais ignoradas e combatidas, das castas e dos guetos. E Jesus diz também que eles pertencem a Deus, e o seu errar lhe causou preocupação. Ele vai buscá-lo no mais fundo abismo existencial, com ternura e cuidado. O pastor alegra-se na volta do que errou o caminho seguro para voltar à casa; alegra-se por proteger os abandonados e esquecidos. Trata-se da alegria “soteriológica” de Deus, expressa em Jesus. É assim o evangelho de Jesus. Em parábolas, ele descreve a alegria do pastor que achou a ovelha perdida, desviada do caminho certo; a alegria da mulher que achou a “dracma” perdida, concluindo: “Digo-vos que assim haverá maior alegria no céu (isto é, em Deus) por um pecador resgatado, do que por noventa e nove justos que não necessitam de resgate” (Lucas 15,7-10).

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