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No livro do Gênesis, a serpente é retratada como uma criatura enganadora ou trapaceira, que promove com artimanhas o que Deus proibiu. A serpente demonstra perspicácia ao fazer seguidores cegos a propostas mentirosas de alguém que lidera uma comunidade (cf. Gênesis 3,4–5,+22). O Novo Testamento identifica a serpente com a figura diabólica de Satanás, e nesse processo redefine-se, pela Bíblia Hebraica, conceitos de liderança de tal forma que Satanás/Serpente se torna parte de um plano satânico para afastar o ser humano da verdade, ou da realidade que o cerca. Contextualizemos com o que se pode observar nos dias de hoje, nas palavras e ensinamentos de Jesus: “Ou fazei a árvore boa e o seu fruto bom, ou a árvore má e o seu fruto mau; pois uma árvore é conhecida pelo seu fruto. Raça de víboras! Como podeis falar coisas boas, sendo tão maus? Pois a boca fala do que está cheio o coração. Uma boa pessoa tira do que é bom em si mesmo tesouro de coisas boas; mas a pessoa má, tira do seu cofre de maldades as coisas piores possíveis” (Mateus 12,33-35).

Assim se exemplificam os paradoxos nas imagens de líderes criminosos, apoiados por evangélicos que participam da eleição de políticos fundamentalistas, sob apoio insistente de pastores e fieis a estes indivíduos, recebendo-os em suas comunidades e igrejas, colocando seus púlpitos e redes sociais, no whatsapp ou canais do youtube, à disposição da propaganda ideológica fascista, enquanto abusam do “pix” para arrecadar dízimos e ofertas para sua obra nefasta. Criaram estruturas profissionais de disparos em massa nas redes sociais, seja para impulsionar postagens e vídeos nas diversas plataformas com propaganda e pastorais ideológicas. Juntos, pastores evangélicos, youtubers, com extremistas da direita, apontaram seus canhões para a apoiar a violência ideológica, representando os milhões de evangélicos que poderiam comparecer àqueles cenários, onde se mistura religião com violência urbana. Não é possível entender como pastores evangélicos convertidos ao sionismo fundamentalista tomem a defesa do Estado de Israel como se estivessem se referindo à defesa do Israel de Deus na Bíblia Hebraica.

Com a pregação desses pastores, a circulação livre de assassinos milicianos, parte perversa da cena urbana se revela, e a morte é um efeito colateral da violência ideológica consentido nas igrejas. Violência que não poupa as crianças nas favelas, nem se escandaliza religiosos com meninos e meninas mortos por balas perdidas. Aceitar que a execução de inocentes seja tão somente responsabilidade do crime organizado é parte da associação de religiosos evangélicos com a ideologia popular representando a violência.

A violência ideológica é parte da vida urbana, inclusive evangélicos e igrejas que se identificam com o fascismo, hoje mais pregado nos púlpitos que o evangelho de Jesus Cristo. A polícia e o crime organizado acumulam cadáveres de inocentes que, se empilhados, chegariam aos céus. Nada expressa melhor a violência religiosa como esse contexto, numa sociedade que encontra em políticos financiados por milicianos a sua melhor expressão. Votam neles homens e mulheres comuns, banais, motoristas de uber, taxistas, encanadores, vidraceiros, motoboys entregadores de pizzas e quentinhas. Alguns deles, em nossas igrejas, fizeram universidade e não raro são pós-graduados, doutores e outros quetais. Alguns estudaram em universidades conceituadas. São pais de família, religiosos, frequentadores de missas e cultos evangélicos, pessoas educadas. São juízes, advogados, que se distanciam de imagens de crueldade e maldade ao redor, nas ruas e nos condomínios onde moram. São nossos parentes, vizinhos, colegas de trabalho, gente que se senta no mesmo banco de igreja conosco, orando ou rezando. Nada predispõe tais religiosos a cometer diretamente crimes contra a humanidade, mas eles se identificam com a violência, enquanto apoiam e colocam políticos que os representam no poder.

A violência policial, antes ditas como controladora do crime e da violência na sociedade, desforra de sua incompetência na população empobrecida das periferias, e eles dizem, na igreja: não é conosco. Mas, evangélicos também são pessoas que justificam massacres em favelas, balas perdidas que matam inocentes, nas chacinas diárias, fuzilamentos de inocentes, na matança policial, nas forças de segurança que matam primeiro para perguntar depois, naturalizando disputas sangrentas entre facções criminosas. E depois vão ao culto para ouvir do seu pregador preferido dizer que a culpa é do “governo comunista” que derrotou o ‘herói’ que governou o Brasil por quatro anos, enquanto pregava a violência e a naturalizava a misoginia, a homofobia, o racismo, o desprezo pela mulher, pelo morador de rua, com palavras obscenas; enquanto milhões de famílias padeciam sob a fome, fazendo fila para recolher ossos e vísceras nas portas de açougues e supermercados.

O desdobramento mais profundo do ser humano nos levará ao confronto com a realidade maior, acima de todas as realidades. É o caminho de Jesus, o homem de Nazaré. Ele é um Filho do Homem, um homem como todos os homens, disseram os escritores dos Evangelhos. Os livros sapienciais da Bíblia Hebraica também falam da sabedoria diante da violência que nos cerca. Jesus é o ser que experimentou os caminhos obscuros de todos os humanos. Ele é a suprema manifestação da glória de Deus na rota dos que esperam redenção e salvação. Se os falsos deuses nos atraem, se as serpentes seduzem — como fazem lideranças evangélica em favor da violência ideológica –, elas acabam por aproveitar-se de nós. Por fim, teremos que descobrir que seus ídolos têm os pés de barro, são surdos, mudos, imóveis (Salmo 115,4-8 – “Os ídolos deles — ídolos do poder –, de prata e ouro, são feitos por mãos humanas. Têm boca, mas não podem falar, olhos, mas não podem ver; têm ouvidos, mas não podem ouvir, nariz, mas não podem sentir cheiro; têm mãos mas nada podem apalpar, pés mas não podem andar; e não emitem som algum com a garganta. Tornam-se como eles aqueles que os fazem e todos os que os seguem e neles confiam”.

São pastores que conduzem os fiéis a lugar nenhum, ao vazio ou aos abismos da vida religiosa sem sentido de salvação, desviada da fé que motivaria os fiéis a resistir à violência e que deveria reuni-los em torno de tarefas humanitárias, combate à violência maior da fome e da miséria; reclamar direitos à partilha de bens a eles negados, em qualquer tempo. O brilho das conquistas e domínios políticos evangélicas em nosso tempo acabam por revelar nossas mais íntimas e profundas contradições nos exemplos e nos paradoxos da religião cristã em nossos dias. A serpente continua decidindo por nós.

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