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Posted by Derval Dasilio in Sem categoria
Lucas 10,25-37 – Quem são os nossos próximos

lucas-o-proximo Nos dias de Jesus, só se fazia o que permitia a estrutura legal e rejeitava-se o que era proibido por esse conjunto autoritário. O legalismo, imposto, era a norma oficial da moral do povo. Tinha-se chegado, por exemplo, a estabelecer, partindo da lei religiosa, que a lei do culto — leia-se como lei do templo ou da “igreja” –, primava sobre qualquer lei.

Este foi o contexto em que nasceu a parábola do bom samaritano: um homem necessitado de ajuda, caído no caminho, mais morto que vivo, sem direitos reconhecidos, violentado em sua dignidade de pessoa, ferido e nu, é abandonado pelos cumpridores da lei (sacerdotes e levitas, servidores da religião) e em troca é socorrido por um “ilegal” samaritano. A bem dizer, alguém que não se sujeitava ao conjunto jurídico religioso autoritário, não podia entrar no templo, e não tinha boas relações com judeus. Ele é um “distante”, um estranho, um “anti-próximo”, mas passa a ser modelo exemplar do “próximo” oferecido ao religioso cristão.

Somente Lucas conservou para nós esta parábola no seu Evangelho. Jesus, por sua vez, devolve a pergunta para que o letrado religioso pesquise a lei codificada, sua especialidade. Ele encontrará a resposta no amor… O religioso culto, citando de memória as Escrituras (Dt 6,5 e Lv 19,18), faz uma síntese do conteúdo dos 613 preceitos religiosos (cerca de 430 negativos: “não farás…”) sobre como “amar a Deus e ao próximo” sob a lei deuteronômica… Encontrada também no Thalmud e no Midrash (da palavra derash, procurar). Comportamentos de conduta são conhecidos como halakah, um conjunto de preceitos gerais. Jesus, porém, responde de acordo com o Pentateuco – os cinco primeiros livros, conforme a versão grega Septuaginta; e também na Torah, versão hebraica (Tanach): Devarim (Deuteronômio) e Vaiycrá (Levítico) –, como foi perguntado. Jesus aprova a resposta da tradição bíblico-teológica rabínica.

O letrado interroga novamente, porque no Levítico o próximo é o israelita – ascendente histórico do judeu –, e no Deuteronômio, este título está reservado unicamente para pessoas do meio cultural e religioso judaico… Jesus, em vez de discutir e entrar em desafios sem saídas, procura não semear novas teorias e interpretações perante a lei antiga, e sua prática. Propõe uma parábola como exemplo vivo de quem é o próximo, e constrói um midrash, ou um sermão exemplar sobre os significados do amor.

Quando dizemos que a descrição do samaritano é esplêndida, nesta parábola de Jesus — com referências a posses materiais do samaritano bem-posto: azeite, vinho, cavalgadura, dinheiro para ajudar um pobre infortunado que encontra ferido e abandonado no caminho –, nos aproximamos de questões básicas. Bem-postos economicamente, religiosos, desprendimento, solidariedade da parte de quem propõe esforço pessoal no socorro dos enfraquecidos, sob sistemas políticos e econômicos egoístas e injustos, e disponibilidade para assistir despojados e violentados da sociedade humana em todos os tempos e lugares. O samaritano, além de compassivo e solidário, é um homem rico. Contudo, um homem cheio de amor pelo próximo, seja ele quem for.

A história humana é caracterizada por uma interminável sucessão de negações do amor ao próximo (Bernhard Haring). Os resultados da intolerância são feridas abertas, exclusão e marginalização, gerando o abandono e morte social dos mais pobres, feridos em sua dignidade (dignitatis = direitos fundamentais). Só o amor transforma a justiça codificada, que privilegia quem já é privilegiado, em justiça igualitária, compassiva, situacional, concreta. Especialmente quando nos deparamos com emergências e prioridades. Notadamente quando a vida humana está em perigo de morte.

O amor torna a justiça verdade ética inquestionável, porque a decisão tomada sob sua influência é, originalmente, gratuidade e a compaixão pelo fraco. “Justiça sem amor é necessariamente injustiça, porque o amor não remove, mas simplesmente estabelece a justiça”, disse Paul Tillich. A justiça sem amor ignora a solidariedade, a misericórdia ou a compaixão.

O próximo jorra da mesma fonte, é resultado da terra; é filho da sociedade humana, e se relaciona com o mundo da mesma maneira que eu. É, o próximo, imagem e dádiva de Deus, ao mesmo tempo. Todos os valores relacionais ideais constituem ponto de partida anterior à justiça codificada. Dizem respeito à vida de todos. O próximo nos comunica: “sou um corpo concreto, e tu me conheces na materialidade compartilhada da vida”. Cremos que a concretude da vida é um fato que não deve ser esquecido, para que não caiamos em abstrações e reduções do corpo do próximo, diria Rubem Alves: o próximo, corporificado, vale mais que todas as verdades que anunciam sua pequenez; o corpo aguarda a consciência de que somos iguais. O corpo é mais sábio do que a cabeça, ou o cérebro.

Emmanuel Lévinas, pensador judeu moderno, diz: “Deus vem ao meu pensamento quando vejo no outro o próximo”. Na face do outro está o rosto transcendente de Deus (cf. Mateus 25,38). Também judeu, Martin Buber dizia: “O outro (o próximo) não é um isto, mas um tu”. Tenho comentado sobre a relação “Eu | Tu, equação amorosa criada por Buber, lembrando: “Eu sou tu quando me olhas, e Tu sou eu quando te olho”.

Muitos agnósticos, e até mesmo ateus, deparam-se com a parábola evangélica sobre a solidariedade amorosa apontada em Lucas (10,25-37), e reconhecem que não há futuro pra a dignidade humana num mundo tomado pela impiedade, senão pela compaixão e solidariedade. Para os cristãos, o evangelho oferece a oportunidade de compartilhar a experiência de Deus com o mundo do próximo, através da solidariedade, reconhecendo-o como o nosso “Tu”. Esta oportunidade, por si mesma, reflete o amor e a experiência de Deus. Num só momento.

A força potente do amor energiza e dá capacidade de lutar, de proteger, socorrer, vestir, alimentar e curar o próximo. Diz a canção de Carlinhos Lyra: “Sabe você o que é o amor? Não sabe? Eu sei./ Sabe gostar? Qual sabe nada, sabe, não./ Você sabe o que é uma flor? Não sabe, eu sei. / Você já chorou de dor? Pois eu chorei. / Já chorei de mal de amor, já chorei de compaixão./ Quanto à você meu camarada, qual o quê, não sabe não./ Você não tem alegria, nunca fez uma canção, / Por isso a minha poesia… você não rouba não.

Agostinho, na antiguidade, confessava: “O meu amor é o meu peso; onde quer que eu vá, ele me conduz e me faz inclinar”. Esse “peso” é citado por Jesus: “Vinde a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu aliviarei vocês. Tomem sobre vocês a minha carga e aprendam, porque sou manso e humilde de coração; e acharão descanso. Porque o meu peso (amor) é suave, e o meu fardo é leve” (Mateus 11:28-30). Uma metáfora magnífica da compaixão, da ternura, da solidariedade que nos une ao que sofre, na experiência de Deus em Jesus.

Derval Dasilio

29º. DOMINGO DO TEMPO COMUM DEPOIS DE PENTECOSTES
Amós 7,7-17 – O Senhor despreza a religião emparedada e sem misericórdia
Salmo 82 – O Senhor faz justiça aos órfãos e os fracos
Colossenses 1,1-14 – Viver frutificando o bem, acima de tudo

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